CamГµes, Os LusГadas e a RenascenГ§a em Portugal
Joaquim Pedro Martins
Joaquim Pedro de Oliveira Martins
CAMÕES, OS LUSÍADAS E A RENASCENÇA EM PORTUGAL
CamГµes, Os LusГadas e a RenascenГ§a em Portugal
Em Cascais, as naus fundeadas esperavam que Diogo do Couto voltasse de Almeirim, onde fora solicitar de el-rei a sua entrada no Tejo, porque Lisboa estava fechada com a peste. Logo que a ordem veio, a “Santa Clara” entrou a barra.
NГЈo nos disse CamГµes que impressГµes assaltaram o seu espГrito ao pГґr pГ© em terra; mas Г© verdade que a miragem seguida desde os confins do mundo, essa visГЈo de uma pГЎtria que se confundia com o prГіprio cГ©u, dissipava-se agora, esfolhando-se mais uma flor de esperanГ§a – porventura a Гєltima!
Lisboa era uma necrópole. A peste, a peste grande, o flagelo medonho, começara no Verão de 1569, num estremecimento de terror popular, e ainda quase um ano depois açoutava Lisboa, já menos intensa, porque a cidade morrera ou emigrara quase inteira. A Corte fora esconder-se em Almeirim. Desembarcando na Ribeira das Naus, Camões parou, chorou decerto, vendo a Rua Nova com os seus formosos bazares fechados, os maraus jogando a bola, e a erva crescendo entre as lajes da calçada.
ГЂs primeiras chicotadas do flagelo, o povo via claramente nessa desgraГ§a o castigo das maldades do ano anterior, quando o governo, para acudir Г invasГЈo de moeda falsa de cobre que os ingleses nos mandavam nos barris de farinha e nas pipas de pregos, levando de cГЎ todo o ouro e toda a prata, ordenou a redução do valor do cobre a um terГ§o: o patacГЈo de dez reis a trГЄs, a moeda de cinco reis a real e meio, a de trГЄs reis a um, a de real a meio. Fez-se isto em quarta-feira de trevas, e os pobres, vendo-se perdidos, arrancavam as barbas de desespero. Muitos enforcaram-se. O gentio rico folgava, triplicando os trocos. A impressГЈo foi tal e tanta, que desde logo se vaticinaram as maiores desgraГ§as, e o ano de 1568 decorreu funebremente num terror. Em 1569 anunciava-se que no interlГєnio de Julho, a 10, se havia de subverter a cidade: o Castelo juntar-se-ia ao Carmo e a Almada. JГЎ os casos de peste bubГіnica principiavam a repetir-se. E se os montes da cidade nГЈo caГram nesse dia em que ela se despovoou com medo, caГa fulminada a gente na rua, conversando, ao topar com um amigo. O ar envenenava. O flagelo seguia, crescendo em fГєria. Chegaram a morrer de quinhentas a setecentas pessoas por dia. Atulhados os adros das igrejas, era mister abrir fossos para enterrar os cadГЎveres aos trinta e quarenta, porque Lisboa estava В«cheia de mortos que caГam aos bandosВ», e Г falta de coveiros indultavam-se os galГ©s. В«Tudo nela era fogo e mortandade, choros e gemidosВ». Os montes nГЈo se tinham subvertido, mas essa profecia simbГіlica realizava-se, porque se subvertia toda a gente viva. В«Lisboa ia acabar-seВ».
Quando a “Santa Clara” fundeou no Tejo, em Abril de 70, já a peste se podia dizer extinta. Extinguira-se, é verdade, a gente. «Corria-se toda a cidade e não se topavam cinco pessoas vivas e sãs». Foi esta necrópole a Lisboa que o poeta veio encontrar, como realidade da Sião chorada na praia macaista e nos campos encharcados do Cambodja!
Mas trazia consigo um talismГЈ, os “LusГadas”, que eram a sua prГіpria alma, cristalizada em estrofes. Ao mundo exterior que desabava, contrapunha o seu mundo interior construГdo e forte, e a necrГіpole parecia-lhe uma miragem: miragem a morte, miragem as ruГnas, miragem tudo, e sГі verdadeira realidade o seu sonho de poeta, o seu livro! NГЈo pensava decerto cantando В«a gente surda e endurecidaВ», levantГЎ-la e dar-lhe ouvidos; pelo contrГЎrio, era com violГЄncia e esforГ§o que punha o remate Г obra:
Aqui, minha CalГope, te invoco
Neste trabalho extremo, por que em pago
Me tornes do que escrevo, e em vГЈo pretendo,
O gosto de escrever, que vou perdendo.
VГЈo os anos descendo, e jГЎ do Estio
HГЎ pouco que passar atГ© o Outono;
A fortuna me faz o engenho frio,
Do qual jГЎ nГЈo me jacto, nem me abono;
Os desgostos me vГЈo levando ao