O ninho de ГЃguia
JosГ© Valentim Almeida
JosГ© Valentim Fialho de Almeida
O NINHO DE ГЃGUIA
O ninho de ГЃguia
Na tarde anterior dirigia-me ao momento, caГa a noite. Uma contemplação profunda fazia-se em torno e o campo adormecia. Sobre as ГЎrvores, o cГ©u cГґncavo tinha laivos rosa, como sorrisos de bocas que exalam o Гєltimo adeus. Por entre os caules seculares dos azinhais e carvalheiras, uns acharoados de incГЄndio ardiam em apoteoses fГєlgidas, sobre que os braГ§os do arvoredo desenhavam em negro formas de estranhos esqueletos. CaГam a prumo, duma banda e outra, formas de granitos ГЎridos, mostrando nos recГґncavos e na profundeza lГґbrega dos barrancos os primeiros fantasmas da noite, com os seus capuzes de sombra de derrubados na fronte, e um escorregamento de passadas misteriosas, como de ronda sinistra, que desemboca na quietidГЈo de uma viela, no silГЄncio da noite velha. Ao centro do abismo a vereda serpenteava, corcovando a sua fita saibrenta entre aglomerações bruscas de basalto e grГ©s vermelho, donde os matagais irrompiam como hirsutos cabelos de uma cabeГ§a decepada. Sobre a vegetação agressiva dos espinheiros e zambujais uma linha de ГЎgua corria, fazendo mergulhos tГmidos de segredos trazidos de fraga em fraga – e essa queixa contГnua e chorosa das gotas caindo manso acrescentava uma nota saliente Г sinfonia em surdina dos vegetais adormecidos e dos ninhos em rumor. O montado comeГ§ava dali a subir pelo irregular das colinas. NГЈo podia enganar-me na marcha. Tinham-me dito – vais pela vereda, chegas ao cotovelo da rocha, Г esquerda, sobes a encosta.
– É a Гєltima azinheira, tronco direito e vermelho, com a cortiГ§a descascada. Leva corda para subires. Olhas para cima, aproximas-te sem fazer ruГdo, ouve – sem fazer ruГdo! dГЎs com o ninho logo. Quando a noite se fecha, a ГЎguia chega, asas abertas, voo circular e gritinhos alegres de boa mГ©nagГЁre que volta com o dia ganho e um rГ©ptil no bico curvo, para os pequeninos esfomeados.
Decorar todo este itinerГЎrio, prometendo nГЈo esquecer a melhor cautela, iria devagarinho, muito devagarinho, sem chapГ©u, descalГ§o mesmo, olhando para cima e em direitura Г azinheira de tronco vermelho e nu de cortiГ§a. Tinha entГЈo doze anos, era rubro e selvagem, de grenha fulva, dentes pequeninos e brancos, que eriГ§avam de gumes o meu riso escarlate e feroz – de korrigan vingativo. Achavam-no o orgulho de u rei e a pouca educação de um herdeiro presuntivo. Era de poucas palavras, vinham-me ao sol alegrias colossais que transbordavam de mim como o rufo de um tambor extravasa de caixa de ar; todos os meus mГєsculos amplos e duros na contracção, contornados nas linhas altivas de um atleta imberbe, amavam luta e se tonificavam na carreira. Passaram atГ© ali numa herdade, entre boiadas de que uma mansidГЈo poderosa se abala glorificando a forca, a rabeira dos arados, plena liberdade montesa, onde o homem regula as pancadas do seu coração pelo ritmo tranquilo da grande natureza que desabrocha em evoГ©s e hilariantes. ManhГЈ nada, jГЎ eu estava a pГ©, sentado a banca da cozinha com os ganhГµes da herdade, diante da aГ§orda patriarcal que o alho impregna de odores vermГfugos. Vestia como eles a camisola de lГЈ, o largo chapГ©u de borla e os grossos sapatos cardados, piГЈo na algibeira, uma cicatriz transversal na testa, de pedradas antigas. Era imperioso e adorado; de resto abusava, dizia sempre – quero, porque quero! Quando eu dormia, minha mГЈe ia beijar-me, e de uma vez, acordando sob um desses beijos, que sГЈo como ninfas albas caГdas no mГЎrmore de epidermes frias, voltei-me e disse enraivecido:
– Os homens não se beijam, apre!
Duma vez bateram-me. Enquanto eu berrava, o galo, cantando, fazia-se apoteose da postura recente de uma galinha amarela, que desposara. Fui-me a ele e torci-lhe o pescoço.
– Para não mangares comigo. Toma!
A eira, diante do monte da herdade, era um plano inclinado, dura e polida, sem ervas. Deitava-me no cimo e vinha rolando até baixo. Nunca conseguiam trazer-me limpo – que tinha um ódio in